Você pode nunca ter ouvido falar em procrastinação de vingança na hora de dormir, mas podemos apostar que você faz isso constantemente. Quer ver? Sabe quando você acorda, trabalha o dia inteiro e, depois de fechar o computador, começa sua segunda jornada? É organizar louça e roupa, fazer jantar, botar filhos para dormir ou colocar a comida do cachorro, responder Whatsapps, esquematizar o dia seguinte... Daí na hora em que você idealmente deveria fechar os olhos para dormir, você simplesmente se recusa - e de propósito vai dormir tarde. Depois de um dia inteiro cumprindo tarefas e obrigações, aquele é justamente o momento do dia que você tem para relaxar e não fazer nada, e você vai dormir? Não! O problema é que quando você se toca já passa de meia-noite.
Então, já fez isso, né? Pois esse hábito tem nome - sim, é a procrastinação de vingança na hora de dormir: pra que dormir se a gente pode ficar futucando o Instagram sem se concentrar muito ou rir de meme no Twitter? A jornalista Daphne K Lee foi quem definiu o fenômeno lá mesmo, no Twitter, como "pessoas que não têm muito controle sobre sua vida diurna recusando-se a ir dormir cedo, para ganhar alguma sensação de liberdade durante a noite".
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Uma forma de compensar o tempo gasto trabalhando
Depois de anos ouvindo "trabalhe enquanto eles dormem" e vangloriando a exaustão como um carimbo de sucesso, as longas e estressantes horas de trabalho que parecem ter transbordado por todas as áreas das nossas vidas são assunto sério. São problema de saúde mesmo, que dão ainda mais espaço para fenômenos como a procrastinação de vingança da hora de dormir.
Pegue aí um estudo da OMS divulgado há um mês, que concluiu que, só em 2016, 745 mil pessoas morreram por AVC ou doenças cardíacas por consequência de longas horas de trabalho. A grande preocupação da OMS é justamente o fato de que essas cargas horárias exageradas comprovadamente aumentaram durante a pandemia (cerca de 10%, segundo pesquisas da organização). Não só há a pressão de muitas empresas por ainda mais entrega e resultado, como na outra ponta muitos de nós viu no trabalho o refúgio que nos desligou da crise do coronavírus e de longos períodos de quarentena.
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Ah, e junte a isso a oficializada epidemia mundial da escassez do sono, que especialistas apontam como crise de saúde pública (afinal um sono regular ajuda a prevenir até doenças cardíacas). Não é exagero: segundo diversos estudos científicos, 31% das pessoas hoje em dia dormem menos de seis horas por noite, enquanto 69% reclamam que não dormem o suficiente.
Esses dados foram compilados pela jornalista Maria Konnikova, da The New Yorker, em uma série de posts sobre o sono. Ela conta ainda que um pesquisador da Universidade da Austrália do Sul descobriu, ao analisar os registros de sono de crianças de 1905 a 2008, que elas perderam um minuto de sono por ano. "Não é apenas uma tendência do mundo adulto. Nós, como população, dormimos menos hoje", ela escreveu.
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Dormir é perda de tempo?
Aqui no Brasil, a psicóloga Dayane Almeida afirma que essa pressão constante da vida profissional é corriqueira entre seus pacientes: "Há principalmente uma cobrança em relação a essa sensação de que não se tem mais nada além do trabalho", conta, em entrevista à Sallve.
"A configuração do mundo em que vivemos hoje nos coloca em busca de uma felicidade constante, desconsiderando nossas necessidades e limitações, e também nos impõe que dormir é algo secundário, que é 'perda de tempo'. Com a pandemia, especialmente com o home office e desemprego, muitas pessoas relatam que está 'sobrando' o tempo do trajeto até o local de trabalho. Em alguns casos, surge o desejo de acompanhar o movimento perceptível nas redes sociais, de ser produtivo - o que muitas vezes se confunde com momentos de lazer. A ausência de um tempo de qualidade consigo pode vir a ser um gerador de culpa", afirma a psicóloga.
Mas para Dayane, dormir, do ponto de vista psicanalítico, também é entrar em contato com seus desejos e fragilidades, e talvez por isso muitos de nós esteja postergando esse momento dos nossos dias: "Dormir dar espaço para a sua 'realidade interna', que na correria do dia a dia fica oculta, Isso, para algumas pessoas, pode ser muito angustiante. Então a solução é ocupar-se essencialmente com a vida externa: trabalhar, produzir, realizar…"
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Segundo a psicóloga, a privação do sono afeta corpo e mente: memória, disposição física, interesse, prazer... Tudo isso é afetado quando não dormimos o suficiente: "Embora a insônia não seja a única causa da depressão, somada aos escassos recursos internos do sujeito para lidar com a vida, ela pode ser um fator para o desencadeamento de uma depressão já pré-existente", alerta.
Mas o que fazer para combater esse hábito? Embora Dayane enxergue a procrastinação de vingança na hora de dormir como uma espécie de tentativa de "redução de anos", vale aproveitar a conversa e abrir espaço para se analisar internamente, criar um momento de acolhimento e olhar para as necessidades do seu corpo: "Por exemplo, sabe aquela dor de cabeça que não passa nunca? A ansiedade que não te deixa se concentrar, ou o desânimo ou sensação de que nada faz sentido para realizar as atividades? Pois é, pode ser não só falta de sono, mas também de autocuidado".