Durante a pandemia, milhares de pessoas se descobriram infelizes com o que faziam. Estima-se que 70% (IBGE) dos candidatos a emprego mudaram de área durante a pandemia, e comigo não foi diferente. Aos oito anos fui iniciado em uma escola de artes plásticas e visuais, mas bem antes disso já gostava da ideia de arte como um todo. Me lembro de desenhar nas paredes de casa e me sentir Van Gogh, me lembro de pintar livros e mais livros, de colocar cor onde não havia, e esta ser uma sensação única e mágica.
Estudei artes por cinco anos e meio - história da arte, desenho, pintura, escultura, perspectiva, desenho com carvão. E, mesmo assim, uma sensação era sempre evidente: eu não me sentia realizado. Era frustrante o fato de amar a arte como conceito, mas na prática não conseguir realizar nada com perfeição. Meus desenhos nunca eram realistas o suficiente, minhas pinturas nunca ficavam bonitas o bastante, e eu cada vez mais me afastava daquilo. Foi no último ano do curso, faltando menos de 5 meses para terminar, que veio a decisão: tranquei o curso e deixei a ideia adormecida.
+ Alguns convites para o corpo nesse "pós-pandemia"
Anos se passaram, e em 2018 eu postava o primeiro vídeo do meu canal no YouTube. Meses depois, a ideia de respirar arte tinha voltado. Mas como prosseguir com aquilo, se era algo inacessível pra mim? Eu era um garoto vivendo em uma família adventista e pobre, então a ideia de pedir dinheiro pra praticar era simplesmente inviável. Então eu comecei com o que tinha, tinta guache. Foi tudo absolutamente improvisado, algumas caixas apoiando materiais de pintura na minha frente e algumas maquiagens específicas que consegui pegar sem que minha mãe visse.
Nesse meio tempo, me lembro de trocar um boné (que havia sido caro na época) por uma base. Existia em mim um sentimento misto - tanto de adrenalina, por estar fazendo algo completamente impensável para minha família ultra religiosa, quanto do sentimento de que estava fazendo algo que me deixava muito feliz, apesar das adversidades.
Em um dia específico, eu queria que minha amiga me maquiasse. Na minha cabeça era algo simples, mas para minha mãe não. Depois de ver que estávamos usando as coisas dela, ela ficou furiosa, começou a gritar que não era algo certo, correu atrás de mim tentando me bater, ao ponto de ter que subir no telhado para não apanhar.
+ mundo, eu te aceito de volta
Com o tempo, o que era uma maquiagem masculina, com barba e sobrancelhas, foi evoluindo para algo mais abstrato e complexo. Tive que aprender tudo sozinho. Raspei as sobrancelhas e comecei a me montar de fato. Não tinha dinheiro para perucas, cílios, e outros artifícios usados para completar um look de maquiagem, mas finalmente conseguia ver a arte que tanto desejava. Eu fazia parte da arte, ela era feita em mim, no meu próprio corpo.
Hoje em dia, tenho o privilégio de dizer que vivo através da arte que meu corpo transborda, posso dizer de peito aberto que inspiro outras pessoas que se veem em mim, que me veem como possibilidade para expressar algo que talvez nem elas entendam, algo que tenha sido negado, proibido, colocando como inadmissível, e é uma das melhores sensações que já tive.