Lela Brandão não está exagerando quando começa a contar sua jornada da pele com um spoiler: "É uma jornada e tanto". E é mesmo. A criadora de conteúdo que virou CEO conta que começou a entender seu corpo quando tinha 8 anos. Lela tem muito quadril e muita bunda, como ela mesma se descreve: "É algo bem típico da minha família armênia", comenta. "É algo que nos une, e pode ser tanto num auto ódio como em algo bonito. Eu mesma, por muito tempo, tive ódio disso".
Uma jornada que começou cedo
Foi ali, tão novinha, aos 8 anos, por conta dos tantos comentários em torno da sua forma física, que Lela se deu conta de que era mulher: "Comecei a ser sexualizada pelas crianças que estudavam comigo e até por homens mais velhos". O resultado de tanto desconforto foi o início de um processo muito difícil de distúrbios alimentares, aos 13 anos. "Tive anorexia, bulimia e compulsão alimentar. Pra mim, desenvolver tudo isso aos 13 anos é cedo demais", lamenta, completando que fica triste ao pensar que sua cabeça tão novinha já se preocupava com coisas tão difíceis e pesadas. "Isso já faz mais de dez anos, e ainda tenho reflexos desse processo em mim, tanto psicológicos quanto físicos. E foi muito difícil sair disso, mas eu consegui".
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O processo, porém, foi solitário: "Não pude contar com ajuda psicológica, as pessoas ao meu redor não entendiam o que eu estava passando porque não era uma coisa discutida na época, e feminismo nem era uma palavra no meu vocabulário". Toda essa experiência, que ficou com a Lela, se transformou em semente de uma nova jornada, muito incrível: durante todo esse processo, a hoje empresária começou a perceber que as roupas tiveram muita influência nesse relacionamento turbulento que ela desenvolveu co seu corpo: "Reparei que uma das coisas que me faziam entrar tão em guerra com meu corpo eram as roupas que eu escolhia usar. Muitas vezes eu acreditava que meu corpo era inadequado, errado e que precisava ser diferente simplesmente porque comprei uma roupa que não foi pensada para mim ou de um tamanho que não era o meu".
O início de uma nova etapa
Foi justamente isso que fez com que Lela começasse a se interessar por roupas mais confortáveis e adaptáveis, e foi daí que nasceu a ideia de sua marca de roupas que se adaptam ao corpo, e que leva seu nome: "Hoje eu não sei meu tamanho, quanto visto de calça, quanto meu corpo mede nem qual é o meu peso porque minhas roupas não denunciam isso. Eu passei anos tendo que caçar uma peça de uma coleção inteira com essas características, e foi por isso que decidi criar a marca, para que todas as peças fossem assim e a gente não precise ficar procurando muito".
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As peças de roupa que não abrem espaço para que Lela fique pensando no tamanho de seu corpo, ou se ele mudou, respiraram uma brisa fresca, que ela diz ser uma relação de neutralidade com seu próprio corpo: "Não tem nada me apertando ou me incomodando, e isso me ajuda muito mais a enxergar meu corpo como ele é, e não como algo em que eu preciso estar trabalhando para que seja alguma coisa. Não, esse corpo sou eu".
"Hoje em dia é muito dificil essa jornada de 'eu amo meu corpo incondicionalmente'. Acho que existem pessoas que estão nesse processo, mas a maioria não está nesse momento, inclusive eu. Às vezes no mesmo dia eu amo e odeio meu corpo, mas tenho muito orgulho de falar que meu corpo não é uma questão pra mim".
Lela Brandão
Um post que marcou sua vida
Dos tantos conteúdos que Lela já criou abordando sua relação com seu corpo, inspirando tanto quem a segue nas redes sociais, foram dois posts específicos - um vídeo seu no YouTube e um post seu no Instagram - que mais geraram conversa: neles, Lela abriu o jogo sobre seu relacionamento com os quadris que vieram de herança de família. "Até o ano passado eu nunca tinha postado uma foto da minha bunda, as pessoas nunca tinha visto. O máximo que tinha feito era o vídeo no YouTube em que falei sobre a história da minha bunda, e como isso se desenvolveu em distúrbios alimentares, e como isso tinha sido o começo da marca... Mesmo lá eu tinha mostrado rapidamente a minha bunda, de calça, e pedi para que ninguém comentasse sobre ela. Naquele momento eu entendi que na verdade eu não estava pronta, mas precisava fazer aquilo. Ela é parte importante de mim e da minha história. Esse foi o primeiro passo".
O segundo passo - o tal do post no Instagram, que rendeu tantos comentários de outras pessoas que passaram a assimilar melhor seus corpos depois da imagem e do desabafo de Lela -, veio quando sua marca lançou um maiô/body. Foi a primeira vez que a criadora de conteúdo, que sempre é modelo de suas campanhas, pensou em não posar: "Mas pensei, por outro lado que precisava fazer isso, tava na hora, mesmo eu não estando pronta". Depois de uma conversa sincera e delicada com a fotógrafa que faria os cliques, pedindo carinho a cada nova foto, Lela respira aliviada: "Foi super tranquilo. Quando chegaram as fotos, eu odiei algumas, enquanto gostei mais de outras. Mas decidi que precisava postar para tirar isso da minha frente". Ela diz que não foi fácil, mas que precisava fazer isso por ela mesma, e mais: "Para que as pessoas entendam que essa ideia de que sou super bem resolvida - que é como se referem à gente que cria conteúdo - não é a realidade muitas vezes".
"Acho importante destacar que se mesmo a gente, sendo dentro do padrão, tem 300 mil questões, imagina para uma pessoa gorda, que a própria sociedade não se encaixa no corpo dela, que diz que esse corpo não é apropriado para sentar nessa cadeira, para passar nessa catraca. É um nível de dificuldade muito maior"
Lela Brandão
O resultado do post emociona Lela até hoje: "Foi um alívio, foi muito acolhedor ler todos os comentários, eu leio e choro até hoje. Cada uma tem uma questão com uma parte do seu corpo, todo mundo tem uma parte do seu corpo que constitui sua história, de aceitação ou relação com seu corpo. Foi importante para entender que todo mundo tem isso, que não sou só eu. Foi muito importante ter postado a foto do maiô e ter explicado que não era uma questão simples para mim. No ensaio, quando conversei com as fotografas, elas me dirigiram super bem e foram mega acolhedoras. Foi nesse ambiente que consegui enxergar, pela primeira vez, quando as fotos chegaram, que eu gostei. E não fiquei insegura de postar. Mesmo as fotos com celulite, estria... Eu consegui entender que existe beleza em tudo isso, e foi muito legal viver esse processo na internet, porque todo mundo acompanhou e acolheu esse processo com muito carinho".
A diferença entre aceitar e entender
Quando se fala em corpo, até mesmo aqui na série de #grandesgostosas da Sallve, falar sobre a aceitação do próprio corpo é um assunto recorrente. Lela, porém, acrescenta outra palavra: entender seu corpo, que é "justamente você não se forçar a ter uma relação positiva com cada parte dele", ela explica. "Quando eu coloco que o primeiro passo antes de aceitar é entender meu corpo, vem de entender, por exemplo, que minha bunda vem da minha genética, da parte armênia da minha família. E depois, é entender o que essa parte armênia da minha familia trouxe para mim além da minha bunda, como todas as suas tradições. Toda essa genética que constitui o meu corpo passa por todas as tradições e culturas que herdei da minha familia. Se no seu caso não passa pela genética, é entender qual é a importância dessa parte do seu corpo que você odeia tanto. É o que a gente chama de body neutrality. Mas acho que não é nem uma neutralidade, é uma compreensão mesmo, de olhar o seu corpo e entender que ele é".
A pandemia e o olhar pra dentro
Se para tantos de nós a pandemia trouxe uma revolução de mudanças internas e externas, para Lela o período só deu continuidade a algo que ela já vivia, trabalhando em home office bem antes da pandemia e passando a maior parte do tempo sozinha em casa:
"Esse prcoesso de se conhecer e estar só você e o seu corpo, de decidir o que você vai vestir de acordo com o que você quer e não como você precisa se apresentar lá fora eu vivi antes da pandemia", conta.
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Na pandemia, a grande mudança que ela originou foi colocar seu corpo a serviço de um bem maior: "A gente começou a fazer as modelagens das peças da marca em relação ao meu corpo, e foi muito revolucionário para mim entender, quando chegava uma pilotagem de uma calça, que se ela apertou, se não está caindo bem, é ela que vai mudar, não é o meu corpo. Eu faço isso na prática. E colocar meu corpo nessa situação, constantemente, me fez respirar depois de ficar muito tempo debaixo d'agua. As roupas estão se adaptando ao meu corpo e eu consigo de alguma forma proporcionar isso pra outras mulheres também. Isso pra mim é que foi revolucionário durante a pandemia".
Vestindo a camisa da grande gostosa
Para as Grandes Gostosas que querem vestir a camisa, literalmente, olha só: a própria Lela já lançou a peça em sua marca.
Mas afinal, o que é, para Lela, ser uma #grandegostosa, como ela já se definiu tantas vezes no Instagram? "É um estado de espírito", responde, bem rápida. "É por isso que eu fiz a camiseta, na verdade. Tem dias que você se olha no espelho e fala 'putz, que grande gostosa', e tem dias que não. A camiseta é esse lugar de você lembrar que vc é, e enfrentar o dia lembrando que você é".
"Ser uma grande gostosa não tem a ver com a aparência do seu corpo, na minha opinião. É se apoderar de um discurso do qual já fomos muito reféns por muito tempo. Você mesma se classificar como grande gostosa é muito massa".
Lela Brandão
Sobre o tema, Lela conclui, ao ser questionada sobre a dificuldade de levarem a sério uma mulher que gosta de exibir seu corpo: "Um mesmo corpo comporta uma mulher que é empresária e que está de biquini numa foto. Uma mulher que fala sobre sexo é a mesma que fala sobre negócios. Não precisa ter uma escolha, não é assim", afirma. A gente escolhe tudo ao mesmo tempo sim!